||ARMAS DE FOGO E MUNIÇÕES|| Os Buys

REVOLUCIONÁRIOS E CHRISTIANOS GRAÇAS A DEUS


Naquela que foi, provavelmente, a última palestra de Luís Carlos Prestes, este enumerou alguns dos homens que, segundo ele, poderiam ter mudado alguma coisa nos anos entre a Intentona Comunista e a instauração no País do Regime Contra-Revolucionário Estadunidense, entre os quais o de meu avô, Frederico Christiano Buys. A palestra ocorreu na Associação de Engenheiros Ferroviários, ligada ao PT, que tinha ou tem sede num prédio fininho e comprido, em frente à Central do Brasil. Há anos, digo a mim mesmo que vou procurar obter junto ao centro de memória da instituição a fita que certamente existe e se encontra guardada lá, documentando o evento.

Meu avô foi militar e revolucionário, como o pai dele. Aliás, deixa-me começar pelo meu bisavô, Christiano Buys, que dá nome a ruas na Bahia, pois viajou do Sul para o Sudeste a fim de desembainhar a sua espada, proclamando a República naquele Estado, ao mesmo passo em que o Marechal Deodoro o fazia aqui, no Rio de Janeiro, antiga capital federal — com o perdão da licença poética que não leva em conta o que livros como Guia politicamente incorreto da história do Brasil possam dizer de Deodoro. O republicanismo era a posição mais progressista em jogo naquele momento, e o meu bisavô a abraçou com o ânimo de um revolucionário. E, se o leitor estiver pensando que militares não possam se dar a autênticas revoluções, repense: três dos nossos quatro maiores revolucionários, Tiradentes, o já citado Prestes e Lamarca, foram militares. Ao lado destes, como civil, só temos Marighella.

De modo, aparentemente, apenas pouco criativo, mas, de fato, fundamente engajado nas tradições da família, que é muito antiga e originária da Holanda, meu avô, filho de Christiano [Frederico?] Buys chamou-se, como já disse: Frederico Christiano Buys. Sucede que os Buys são todos Christianos, desde tempos remotos; antigamente, era comum que os primeiros filhos homens de cada geração do nosso clã — para usar de uma expressão comum, pelo menos, a meu pai e a meu tio mais velho — ostentassem o lastro da cristandade como primeiro nome e, não raro, chamavam-se Christianos Fredericos. Os segundos filhos na árvore genealógica dos Buys, amiúde, são os Fredericos Christianos, também muitos entre nós. E os demais homens são, por exemplo, Carlos Christiano, Rogério Christiano, Renato Christiano, Igor Christiano, Sandor Christiano(1).

Os Buys chegaram ao Brasil há exatos dois séculos, em 1812; vieram com a corte portuguesa, fugindo de Napoleão, segundo ouvi de meu pai e tio, e, para ratificar, ainda li em qualquer parte. Nobres e, já então, militares, há dezenas, senão centenas de gerações, os Buys teriam alguma espécie de função de aditância no país ibérico. Uma piada também muito antiga dizia que engenheiros holandeses foram chamados a Portugal para dar conta de um problema técnico verificado em relação a uma carga de tamancos importados dos Países Baixos; os tamancos, ao serem acondicionados nos navios, eram amarrados, par a par, com um fio para não se desprenderem do conjunto e, ao chegaram à terra de trás os montes, os técnicos da coroa holandesa teriam tido uma grande surpresa: os portugueses, que já tinham resolvido em parte o problema, saltavam como cangurus, com os pés juntos e os tamancos ainda amarrados dois a dois. Como criança, ao ouvir essa anedota, guardei, em algum momento, a impressão de que a história poderia ter algo a ver com a função diplomática dos meus antepassados naquele, não obstante, belo e querido país que é Portugal.

Em 1922, meu avô, Frederico Christiano Buys, garboso jovem oficial, idealista, patriota e cioso de seguir os passos de seu pai, uma legenda nas forças armadas, foi um dos protagonistas de uma página trágica da História nacional: o Movimento dos Tenentes, de características progressistas, que, durante toda a década de 1920, lutou pelo fim do voto de cabresto e dos desmandos das oligarquias. Em 05 de julho daquele ano, havia diversos levantes marcados para eclodirem simultaneamente em instalações militares da capital, os quais, na última hora, malograram. Apenas o Forte de Copacabana se insurgiu como programado, e teve curso ali o famoso episódio dos Dezoito do Forte, que, realmente, foram treze. Entanto, meu avô, dono da personalidade marcante que o distinguiu a vida inteira, não se conformou com a desistência dos insurgentes na Vila Militar, situada no bairro de mesmo nome, na zona oeste da Cidade do Rio de Janeiro e, sublevando o seu regimento, tomou esta que era a maior unidade militar do Estado. No ápice da crise, os rebeldes sitiaram a residência do comandante que, após um franco tiroteio, foi chamado a vir negociar do lado de fora; o jovem Frederico Buys, destemidamente, tinha se exposto, à frente do seu grupo, com apenas uma pistola na mão. Mas quando o comandante da Vila Militar o seguiu nessa atitude, arrojando-se para onde pudesse dialogar, foi alvejado, segundo ouvi menino, por uma metralhadora que cortou o homem ao meio.

Como resultado, meu avô ficou quatro anos preso na Ilha Grande, até ser inocentado, através de um processo que estaria descrito num livro chamado Os grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal(2).

Frederico foi muito recompensado, ao depois, na vida profissional, por esses anos de prisão, em que, não obstante, caminhava livremente pela Ilha Grande, vero paraíso tropical onde se situava o presídio, hoje extinto; lia muito, e lá, inclusive, veio a conhecer uma linda jovem, descendente de escoceses e filha do delegado de polícia local, chamada Zélia MacCormick, com quem se casou e vem a ser a minha avó. Alguns anos mais tarde, meu avô foi convidado a trabalhar na equipe do adido militar em França, e o casal foi viver na Europa.

Ele faleceu muito antes do infame golpe de 1º. de abril de 1964, vítima de complicações relacionadas à ingestão excessiva de bebida alcoólica, em 1949, ainda moço. De major da ativa foi feito general da reserva três semanas antes do óbito, a fim de que a minha avó pudesse perceber um soldo suficiente para criar sozinha os cinco filhos que teve com Frederico. Meu pai, então, com oito anos de idade, estudava no Colégio Batista Shepard, na Tijuca, e foi retirado da sala de aula às pressas para mergulhar num carro oficial reluzente, de formas arredondas, parado à porta. Durante a viagem, a despeito da consideração que o falecido lhe merecia, o ex-ministro da guerra de Getúlio e, agora, senador por Alagoas general Góis Monteiro, feições de aço, não foi capaz de explicar à criança o motivo daquilo, pois, eventualmente, acabaria por transvasar sentimentos inoportunos a um militar daquela época(3). E, ao chegar ao destino da sóbria e silenciosa diligência, segundo meu pai, ele constatou por si mesmo que: o pai estava morto. Esse episódio aponta, ilustrativamente, para a raiz de uma dualidade patente entre os Buys: a de serem progressistas e sociopoliticamente arejados, de um lado, e, por força da relação de uma parte importante da família com o militarismo, rígidos e tradicionalistas, de outro.

Voltando a meu avô, ele não seguiu com a Coluna Prestes por muito pouco, segundo o próprio Prestes: quando o movimento teve início, encontrava-se na Ilha Grande, depois, quando houve outra oportunidade, sua mãe estava gravemente doente e, inclusive, não se levantaria mais do leito, tendo Frederico optado por estar ao lado dela nos seus últimos dias. E isso, deveras, é tudo o que eu sei da relação de meu avô com o Cavaleiro da Esperança. Mas não me surpreende que o líder da Intentona Comunista o tenha mencionado com nostalgia, idoso já, no final dos anos noventa. Os relatos a respeito dele que me chegaram consignam sempre a sua pessoa como a de um homem magnético, capaz de exercer liderança natural até mesmo sobre superiores hierárquicos. O general Góis Monteiro assina a carta-prefácio de seu único livro Chico Sanhaço: um ensaio em três seções, encetado pela narrativa ficcional da história de um pescador, a qual recebe o subtítulo a vida e serve de pretexto para os dois outros subtítulos: a filosofia e a ação.

O livro, de que tratarei ainda, noutra oportunidade, recebeu uma crítica do grande Gilberto Freyre, efusiva, em alguns pontos introdutórios, e publicada no Correio da Manhã, no sábado, 23 de abril de 1942: [...] Rui Barbosa, por exemplo, quase não conhecia na intimidade problema social brasileiro nenhum. [...] Como tenho procurado destacar mais de uma vez, é dentro do relativismo e, ao mesmo tempo, do regionalismo sociológico, ou antes, da sociologia regional, que podemos estudar e esclarecer o que há em nós de extra-europeu. O major Christiano Buys [o Christiano foi somado ao último sobrenome, de modo até muito adequado, pois se trata, deveras, de um apelido de família] pergunta se “já possuímos uma visualização interpretativa da vida e das cousas nacionais”, “uma lógica brasileira, uma sistemática de conceitos profundamente nossa, a abrolhar do nosso psiquismo... atitudes características, originais e inconfundíveis?” E, ainda, se “somos nós no ato de compreendermos”. Mas as suas palavras: “Nós somos nós no ato de compreendermos, ou, em tal instante, em nós juxtapormos (sic) mentalidades de empréstimo, julgando como os outros povos julgam, raciocinando como os outros povos raciocinam e pensando com as idéias de outros povos?” Aqui me parece haver noção exagerada do que seja a originalidade característica de um povo que se preze de ser mais do que simples reflexo de outros povos. Não creio que essa originalidade precise de ir ao ponto de criar para si própria um raciocínio. A interpretação de culturas tende a acentuar entre os povos modernos coincidências de julgamento, de pensamento e de raciocínio, sem prejuízo da relatividade psicológica, de atitudes e de valores, e sociológica, de estilos de vida e também de valores de cada povo. Atitudes, estilos de e valores coloridos, no caso do Brasil, pelo nosso esforço de adaptação de tradições e importações da Europa ao meio tropical americano.

Quanto a “visualização interpretativa da vida e das cousas” nacional (sic) — desejada pelo major Buys e por todos que orientam seus esforços de pesquisa e valorização do nosso povo e da nossa terra no sentido de um brasileirismo criador — parece que já se esboça entre nós. Depois de José Bonifácio, de Gonçalves Dias e de Euclides da Cunha, já não podemos dizer que nos falta de todo a “visualização interpretativa da vida e das cousas” brasileira. Visualizações não apenas científica — como a de vários naturalistas — nem simplesmente estética — como a de alguns poetas, pintores, romancistas e até pensadores — nem formalmente cívica ou convencionalmente patriótica, mas originalmente brasileira. O caso, nos nossos dias, da música poderosa do grande criador de valores brasileiros e intérprete da nossa vida que é Villa-Lobos. (Gilberto Freyre).



Igor Buys

28 de maio de 2012

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  1. Do último para o primeiro, os nomes de meu irmão, mais novo, o meu próprio, o de meu pai e de dois de meus tios, em ordem crescente de idade. Ocioso dizer que o meu tio mais velho e o segundo mais velho chamavam-se, respectivamente, Christiano Frederico e Frederico Christiano.
  2. Segundo o meu tio Frederico C. Buys Filho, procurador do CNEN falecido há dois anos.

  3. Góis Monteiro era um militar de direita e, inclusive, foi um dos adaptadores teóricos da Doutrina de Segurança Nacional ao contexto brasileiro.